Nada sober vós sem vós

Log in
updated 10:28 AM UTC, May 19, 2023
Informação:
ESTEJA ATENTO: a Plural&Singular faz 10 anos e vai lançar a 28.ª edição da revista digital semestral que dá voz às questões da deficiência e inclusão

Sara Rocha: “Infelizmente quando pertencemos a minorias, não podemos não nos preocupar em não lutar pelos nossos direitos”

Sara Rocha foi diagnosticada com autismo aos 29 anos e desse então é uma das vozes que se levantam para desmistificar o que é ser autista. Licenciada em Análises Clínicas e Saúde Pública e mestre em Gestão e Economia dos Serviços de Saúde, a jovem de 32 anos é a presidente da Associação Portuguesa Voz do Autista que desde a respetiva criação tem tentado transformação a visão negativa associada a esta neurodivergência em orgulho.

01 – Quem é Sara Rocha: como se vê, como as pessoas a veem?
Sara Rocha (SR) - Sempre acho difícil falar de quem sou sem debitar um currículo vitae, mas vamos lá tentar. O meu nome é Sara Rocha, tenho 32 anos e cresci em Aveiro, mas vivo de momento na Inglaterra. Eu sou uma mulher com varias deficiências, sou autista, com défice de atenção e hiperatividade, surdez parcial e estou no espetro da hipermobilidade. Uso aparelho auditivo e tenho uma cadela de assistência, a Dili, disponibilizada pela associação ANIMAS. De momento, trabalho como gestora de dados em investigação na Escola de Medicina Clinica da Universidade de Cambridge, na área de saúde pública. Sou co-fundadora e Presidente da Associação Portuguesa Voz do Autista e represento a European Council of Autistic People no Comité da Mulher da European Disability Forum. Tenho trabalhado em vários projetos a nível nacional e europeu na área da deficiência, especialmente Autismo. Fora do trabalho, faco voluntariado com adolescentes com deficiência, tenho dois gatos e adoro viajar.

02 - Como foram os últimos 10 anos na sua vida?
SR - Nos últimos 10 anos mudou muita coisa, mas foram acima de tudo de descoberta. Em 2012 acabava de terminar a minha licenciatura, sentia-me perdida e sem recursos internos para lidar com o mundo. Não fazia ideia do que se passava comigo e porque era tão difícil para mim as coisas que pareciam simples aos outros. Sem qualquer apoio, entrei em mestrado e rastejei (a palavra mais adequada) pela educação e emprego para conseguir ter um emprego e a formação que queria. Foi quando recebi os meus diagnósticos de Autismo, défice de atenção e hiperatividade e tive acesso finalmente a um aparelho auditivo - que me disseram não ser preciso por ser caro em Portugal - finalmente consegui parar de rastejar. Comecei por me sentar no mesmo sitio para compreender como começar a andar. Hoje em dia tenho finalmente apoios no trabalho e faco um trabalho que amo. Parece quase uma vida diferente e de certa forma é.

03 - Quais foram os momentos mais marcantes?
SR - Sem dúvida que foi o meu diagnóstico. Por um lado, deu me finalmente as ferramentas para eu perceber quais as minhas dificuldades e o porquê de elas acontecerem e como mudar o meu ambiente para eu poder trabalhar e estudar. Isto permitiu ser muito mais simpática comigo mesma. Todos os rótulos que antes me colocavam mudaram também. Acima de tudo, deu-me acesso a um mundo de pessoas que sentem as mesmas dificuldades que eu. Este sentido de comunidade, aceitação e de luta deu-me uma força diferente. O segundo seria a criação da Associação Portuguesa Voz do Autista, que abriu portas para um mundo de pessoas incríveis, amigos e colegas com os quais tenho um orgulho enorme de trabalhar pelos nossos direitos.

04 - Como avalia os últimos 10 anos na vida das pessoas com deficiência?
SR - A Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência foi sem dúvida um avanço histórico que permitiu avançar com a nossa luta pelos direitos de uma forma mais controlada a nível externo. Por muitas dificuldades que tenhamos em conseguir dados sobre pessoas com deficiência, a revisão obriga a "destapar" muitos dos pontos que precisamos saber. A próxima revisão será em breve e apesar de sabermos alguns dos pontos que vão ser novamente criticados, esperamos ansiosamente para que possamos expor preocupações e que se possa rever tudo o que ainda falta fazer.

05 - Em que áreas foi mais positiva a evolução?
SR - Sem dúvida tivemos melhorias. O Regime do Maior Acompanhado por exemplo não é perfeito, mas permite um menor número de pessoas com deficiência a perder o direto a escolher casar, votar e outras questões (apesar de ainda acontecer). A desinstitucionalização começou a ser feita (apesar de normalmente para instituições mais pequenas). A assistência pessoal foi lançada e precisamos que deixe de ser pilotos e que chegue a todas as pessoas com deficiência que necessitam. Temos uma Estratégia Nacional para a Inclusão das Pessoas com Deficiência, que não é perfeita, mas é um começo. A mudança está a acontecer, só precisamos que acelere e que nos incluam.

06 - O que ficou por fazer?
SR - A assistência pessoal ainda em piloto, com poucas pessoas a receber, mas muitas mais que ainda necessitam. A desinstitucionalização, onde continuamos a ver dinheiro direcionado à vida independente a ser utilizado para construir novas instituições. A falta de representatividade no Governo e participação politica praticamente nula, com grande parte dos partidos políticos ainda sem incluírem nem convidarem pessoas com deficiência para posições de decisão, principalmente na área da deficiência. A falta crónica de apoios desde criança, até a adulto, sendo que parece que chegando a adultos, os autistas deixam de existir. Antes disso, ainda a falta de diagnóstico, com uma desinformação rampante sobre o que é o autismo nos nossos serviços de saúde, levando a crianças e a adultos a demorarem anos a serem diagnosticados e a receberem os apoios necessários. A exclusão de uma parte bastante grande de pessoas com deficiência, da definição legal de deficiência, com os 60% a penalizar pessoas com deficiências invisíveis que “não parecem ter deficiência” e a desinformação sobre o autismo novamente representada. A falta de programas de apoio durante a COVID-19 para pessoas com deficiência e cuidadores, apesar de terem sido as pessoas que mais morreram durante a pandemia e a exclusão de algumas deficiências e dos seus cuidadores da fase urgente de vacinação. A inexistência praticamente generalizada de acomodações na educação e emprego, com empresas e professores em universidades ativamente a recusar acomodações a pessoas autistas, sem qualquer dano. A falta da inclusão de pessoas autistas nas decisões que as afetam, com ainda grande parte de consultores e organizações convidadas para participação ativa maioritariamente organizações que representam autistas, mas que não são de autoadvocacia e autorrepresentação. A falta crónica de dados sobre a qualidade de vida e experiências das pessoas com deficiência, que continuam a não ser incluído no censos, por diagnóstico. A falta de serviços públicos adaptados que tenham conhecimento sobre o autismo, principalmente os que vão receber autistas inevitavelmente, como na área do apoio à vítima, de abrigos de violência doméstica, de saúde mental, de prevenção ao suicídio, etc. A investigação de práticas de discriminação, com consequências legais. A investigação de mortes em contexto institucional de COVID-19, assim como violência específica de contexto institucional. A falta de apoios com terapia da fala e terapia ocupacional para crianças, que por vezes leva pais a procurarem terapias alternativas perigosas ou sem base científica. A falta de inclusão da perspetiva da pessoa com deficiência no desenvolvimento de leis, incluindo as recentes que apenas mencionam a deficiência para dizer que são congruentes com a convenção (não são). O facto de que em Portugal em 2022, pessoas com deficiência, e principalmente mulheres, inclusive menores, podem ainda ser esterilizadas por ter uma deficiência. Como podem ver, muito ainda falta. Estamos cá para continuar a trabalhar.

07 - A comparação inevitável: como Portugal se posiciona em relação aos restantes países europeus?
SR - Era bonito sabermos, principalmente sem termos que esperar pela revisão da CRPD para inevitavelmente nos providenciarem dados sobre a realidade das pessoas com deficiência. A falta de dados permite também a negação plausível. Se não existem estatísticas desenvolvidas de forma correta, inclusive ao incluir todas as pessoas com deficiência, e não apenas as com 60% de atestado de multiusos, nunca podemos fazer comparações plausíveis com os outros países europeus, que apesar de poderem ter ferramentas semelhantes ao atestado para acesso a benefícios, a definição legal de deficiência não esta apenas para alguns.


08 - Como acha que vão ser os próximos 10 anos para as pessoas com deficiência?
SR - Vão ser de luta, como foram até agora. Infelizmente quando pertencemos a minorias, não podemos não nos preocupar em não lutar pelos nossos direitos.

09 - Como deseja que sejam os próximos 10 anos na sua vida?
SR - Espero que sejam em comunidade. A melhor parte de fazer este trabalho são as pessoas que vamos conhecendo e a comunidade de pessoas com vontade de mudar o mundo.

10 - Que mensagem deixa à Plural&Singular pelos 10 anos de existência?
SR - Muitos parabéns e que venham mais 10! Obrigada por criarem espaço para a nossa luta.

Itens relacionados

  • É já no domingo: abertura da exposição dos vencedores do concurso internacional de fotografia “A inclusão na diversidade”

    A exposição dos vencedores da 9.ª edição do concurso internacional de fotografia “A inclusão na diversidade” vai estar patente na praça do Instituto de Design de Guimarães de 21 de maio a 30 de setembro. No domingo, dia 21 de maio, acontece a abertura com direito a Verde d’Honra oferecido pela Plural&Singular e ao Mercadinho Tropical, promovido pelo Bar da Ramada 1930.

  • Participe amanhã na marcha pela Vida Independente

    Hoje, 05 de maio, é o Dia Europeu da Vida Independente e para assinalar esta data, amanhã, o Centro de Vida Independente promove uma marcha, em Lisboa e em Vila Real e uma concentração, em Guimarães, que pretende reivindicar uma assistência pessoal adequada e acessível a toda a gente que precisa e na defesa da Vida Independente, uma filosofia que garante "uma efetiva autorrepresentação e autodeterminação" das pessoas com deficiência.

  • Cândida Proença: “Não estou muito otimista em relação ao futuro, uma vez que vivemos momentos conturbados e de difícil gestão”.

    Quem a conhece não resiste à doçura, sensibilidade e inteligência. Cândida Proença, como a própria o afirma, é também decidida, corajosa e teimosa. Todas estas características foram e são essenciais para o percurso de vida que tem feito, na forma como encara as dificuldades, como abraça a profissão , a família que tanto estima, os amigos que acarinha e os projetos em que se envolve. Esta entrevista sai na Plural&Singular, praticamente, em simultâneo da edição segundo livro que escreveu: “Voos de luz e sombra”, um livro de contos que nos faz viajar pelo universo feminino cheio de contrastes.

  • André Capelo Vasconcelos: “Os cidadãos surdos oralizados e utilizadores de tecnologia para ouvir (…) são constantemente desafiados e equiparados a normo-ouvintes, quando não são”.

    Nasceu com surdez profunda bilateral mas utiliza implantes cocleares para ouvir, uns aparelhos mágicos que o ajudaram a concretizar o sonho de ser médico, profissão que exerce na Unidade de Cuidados Saúde Personalizados da Pampilhosa da Serra. Tem sido ativo na missão de defender as pessoas que, como ele, são surdos oralizados e, por isso, mais invisíveis na hora de lutar por direitos. Chama-se André Capelo Vasconcelos, é casado e tem duas filhas e um filho.

  • Tiago Fortuna: “Não só encarámos, como começámos a combater o capacitismo e o assistencialismo crónico do nosso país”

    Tem 29 anos, estudou Ciências da Comunicação, foi assessor de imprensa na LiveCom, fez parte da equipa do Talkfest e fundou a Associação Portuguesa de Festivais de Música. Respira cultura e, por isso, em 2022 criou a Access Lab para garantir a inclusão cultural das pessoas com deficiência e Surdas. É através de uma metodologia inovadora, 360º, que cobre todas as áreas com necessidade de intervenção: percursos, bilheteira, comunicação, programação e mediação de público. Chama-se Tiago Fortuna e é o entrevistado de fevereiro de 2023 da Plural&Singular para celebrar os 10 anos desta revista digital.

Consola de depuração Joomla

Sessão

Dados do perfil

Utilização de memória

Pedidos à Base de dados