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updated 11:43 AM UTC, Feb 23, 2024
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ESTEJA ATENTO: a Plural&Singular faz 10 anos e vai lançar a 28.ª edição da revista digital semestral que dá voz às questões da deficiência e inclusão

Lenine Cunha: “A nível desportivo, é preciso fazer um trabalho muito grande focado na renovação”

Eleito recentemente melhor atleta do mundo com deficiência intelectual, Lenine Cunha, que gosta de ser tratado por Lenny, já não tem vitrinas suficientes para guardar as medalhas alcançadas ao longo da vida. São mais de duas centenas e incluem um bronze nos Jogos Paralímpicos Londres2012. Atualmente representa o Clube Futebol Oliveira do Douro e sonha saltar os 100 metros até aos 80 anos. É o quarto entrevistado da Plural&Singular para o artigo de capa que assinala os 10 anos desta revista digital

01 – Quem é Lenine Cunha: como se vê, como as pessoas o veem?

Lenine Cunha (LC) – Sou atleta, sou vendedor, faço palestras… As pessoas veem-me como um atleta. Ouvi dizer que sou um ser humano fantástico, mas não posso falar por toda a gente (risos). O que tenho feito não só a nível pessoal, mas também em prol do desporto paralímpico. Represento Portugal e dou muitas vitórias e conquistas a Portugal. Mas fora do desporto dou o meu contributo e isso, se calhar, até é o mais importante. Dou palestras nas escolas, falo do desporto paralímpico, conto a minha história de vida e tenho esperança que isso inspire as pessoas ou as torne mais atentas e as sensibilize para esta área.
Neste momento estou há cinco meses a trabalhar na Decathlon [no apoio ao cliente na parte da corrida] em Vila Nova de Gaia (distrito o Porto), numa parceria que a Decathlon Gaia fez motiva-a por princípios de inclusão. Surgiu esta oportunidade. Era para ser um patrocínio, mas eu preferi um emprego com vista a preparar o meu futuro. É um dois em um: é bom para mim e é bom para eles. Gosto muito. Estou-lhes muito agradecido: são meus empregadores e patrocinadores. Sou muito comunicativo, gosto de interagir com os clientes e de falar com os clientes. Alguns reconhecem-me e fico envergonhado. No dia-a-dia, nas compras, quando as pessoas me reconhecem, fico embaraçado. Eu não dava para ser figura pública. É bom sentir o carinho das pessoas, mas fico sem jeito. Este reconhecimento começou a surgir depois da medalha de bronze [Jogos Paralímpicos Londres2012]. Antes já tinha 134 medalhas e agora tenho 234.

02 - Como foram os últimos 10 anos na sua vida?

LC – Em 10 anos aconteceram muitas coisas. 2012 foi o meu melhor ano porque ganhei a mealha de bronze nos Jogos Paralímpicos de Londres. Foi o patamar mais alto onde cheguei. Já tinha sido campeão do Mundo e da Europa, mas nunca tinha alcançado uma mealha nos Jogos Paralímpicos. É a medalha da minha vida. Ganhei o troféu e Melhor atleta o Mundo duas vezes: em 2017 e 2022 dado pela minha federação internacional, a VIRTUS [a VIRTUS é a Federação Internacional para Atletas com Deficiência Intelectual, anteriormente designada INAS].
Estou mais velho [40 anos de idade] e cresci muito. Tenho casa própria, o que era outro sonho, e vivo com uma pessoa.
Tenho de destacar o meu antigo treinador, o José Costa Pereira, que é um segundo pai para mim. Estivemos juntos 22 anos e isso é uma vida. A parceria treinador/atleta acabou, mas ficou a de amigo/amigo tipo pai e filho. O atleta que sou hoje a ele lhe devo. Com ele ganhei 226 medalhas internacionais. São medalhar minhas que são dele. Os troféus de melhor atleta são meus e dele. Sem treinador não há atleta. Vou-lhe estar para sempre grato. Ele continua, agora como presidente da ANDDI [Associação Nacional de Desporto para Desenvolvimento Intelectual], a ser das pessoas que mais faz pelo desporto em Portugal.

03 - Quais foram os momentos mais marcantes?

LC – Tenho um emprego seguro. Andei anos a anos a lutar por isto. Sempre procurei trabalho, mas era difícil as entidades patronais darem emprego a uma pessoa com deficiência, a uma pessoa que se ausenta com frequência para os treinos, estágios, competições.
O mais marcante, a nível desportivo, é a medalha de 2012 [Paralímpicos de Londres] e a medalha de ouro no Mundial de 2015 – um ano terrível em que perdia a minha mãe que era a minha melhor amiga, a minha maior fã e fez de mim a pessoa que sou hoje – porque andava muito em baixo e consegui arrebitar e fui campeão no Catar.

04 - Como avalia os últimos 10 anos na vida das pessoas com deficiência?

LC – Vou focar-me no desporto. As coisas não têm vindo só a melhorar, estão ótimas. Nestes 10 anos houve muita evolução. Há mais apoio, incluindo apoio monetário, para os atletas paralímpicos, há mais bolsas. Estamos equiparados aos olímpicos e há 15 dias soube-se que as bolsas aumentaram. Eu e outros atletas que até já desistiram andamos anos e anos a lutar por isto, pela igualdade. Mas para ganhar essas bolsas é preciso treinar muito e ter muita dedicação. Um atleta para estar nos Jogos Paralímpicos tem de ser um atleta de elite.

05 - Em que áreas a evolução foi mais positiva?

LC – Como disse antes: a equiparação dos atletas com deficiência aos atletas sem deficiência. Os Paralímpicos são iguais aos Olímpicos.
A visibilidade dos atletas com deficiência, o serem reconhecidos, a comunicação social começou a falar dos atletas paralímpicos. Começou a ser dado mais tempo de antena aos atletas paralímpicos e isso é muito positivo. Mas ainda falta algum trabalho.

06 - O que ficou por fazer?

LC – Há muitas pessoas com deficiência em Portugal e precisamos de renovação. É preciso fazer um trabalho muito grande neste aspeto. Neste momento não há atletas para o futuro. A renovação está por fazer. Falta informação sobre o desporto paralímpico.
Na deficiência intelectual, há pais que não querem assumir que os filhos têm deficiência. Isso é um trabalho, uma sensibilização que está por fazer. É muito complicado. Há ainda, um bocadinho, preconceito. A deficiência intelectual, muitas vezes, não se vê e só convivendo com as pessoas é que se percebe as dificuldades que temos. À primeira vista olham para mim e parece que não tenho nada, mas convivendo percebem que tenho dificuldades em muitas coisas: a memória, a concentração… Eu tive uma educação em que os meus pais, sabendo das minhas dificuldades, me prepararam para ser autónomo. E em muitas famílias não é assim. Eu tive a sorte de ter pais e irmãs que se preocuparam com isso: ensinaram-me a cozinhar, a passar a ferro, a preparar uma máquina de lavar roupa… São coisas que parecem simples, mas quando se quer ser autónomo tem de saber.
Na empregabilidade também falta fazer muito. Claro que há situações difíceis. Por exemplo, não podemos ter um repositor em cadeira de rodas na Decathlon. Mas podia fazer outra coisa. Portugal ainda tem de evoluir no emprego para as pessoas com deficiência.

07 - Como Portugal se posiciona em relação aos restantes países europeus?

LC – No desporto paralímpico somos dos poucos países que os Olímpicos e os Paralímpicos são iguais nas bolsas e prémios. Nos EUA não é assim, por exemplo. Em relação à Europa não sei, mas nesse aspeto Portugal está bem melhor. Há muitos países onde a igualdade não é a que temos em Portugal. Foi um belo passo no desporto paralímpico. Mas falta a tal renovação e a publicidade do desporto paralímpico.
Na empregabilidade se calhar ainda estamos um passo atrás. As empresas deviam apostar mais um bocadinho até porque têm apoios. Nesse aspeto temos de evoluir mais.

08 - Como acha que vão ser os próximos 10 anos para as pessoas com deficiência?

LC – Espero que as coisas melhorem. Se não melhorarem nos próximos, já nem digo 10, mas próximos cinco anos, o desporto paralímpico está mal. Neste momento, uma competição paralímpica é muito competitiva. Os níveis estão muito altos, os mínimos de participação para Jogos Paralímpicos estão muito altos. É preciso treinar muito e fazer disto vida. Tem de se ser atleta profissional para se chegar longe.
Acho que vão ser anos desafiantes. No desporto ou há renovação e se dá mais visibilidade às pessoas com deficiência e ao desporto paralímpico, ou tudo se torna muito difícil. O meu contributo vou dar sempre, mas as federações, o Comité Paralímpico e os clubes têm de fazer o seu papel. Neste momento são os clubes locais que estão a investir mais do que as grandes entidades.

09 - Como deseja que sejam os próximos 10 anos na sua vida?

LC – Acho que, não digo para o ano, mas se calhar no outro, vou casar. Vou continuar a praticar atletismo, sem dúvida. Já ando nos veteranos [onde a competição é a partir dos 35 anos] no desporto regular e não no paralímpico. Acho que 80 anos ainda me vão ver a fazer os 100 metros. Só se o meu corpo não puder mesmo. Tenho o sonho de ser treinador de desporto paralímpico. Imagino-me a treinar crianças e porque não sonhar, se tiver um atleta e topo, em ir aos Jogos com um atleta de elite, sendo eu treinador. Sonhar nunca fez mal a ninguém. O meu lema de vida foi sempre: Nada é impossível. Se eu meter na cabeça, vou lutar por isso.

10 - Que mensagem deixa à Plural&Singular pelos 10 anos de existência?

LC – Como disse, o meu lema é: Nada é impossível. Eu olho para vocês e vejo que vocês acreditam neste lema. Vocês têm tido muitos altos e baixos e eu sei muito bem o que isso é. As pessoas pensam que eu ganho mealhas e mais medalhas, mas eu também tenho momentos difíceis. É muito fácil falar, mas as pessoas muitas vezes não sabem o que passamos e o que sofremos com lesões, perdas familiares, com o dia-a-dia. E com vocês, de certeza, que é igual. O que vos posso dizer é: vocês estão a fazer um trabalho ótimo e nunca desistam porque o melhor ainda está para vir. Mesmo cano as coisas parece que correm mal, um dia mais tarde vamos ser recompensados pelo nosso trabalho, dedicação, esforço. O reconhecimento vem sempre. Lembrem-se que nada, mas mesmo nada, é impossível.

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